A análise das mudanças da legislação brasileira ao longo dos anos, com foco no papel das mulheres na sociedade, revela que as últimas décadas foram determinantes para a consagração de um sistema de proteção contra a violência de gênero e a busca pela igualdade da mulher. O histórico legislativo revela também quão patriarcal e misógino tem sido a sociedade brasileira e o quanto ainda é preciso avançar.
No período do Brasil Colônia Séc. (XVI ao XIX), regido pelas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, têm se um período em que as mulheres não tinham direito a fala, suas decisões eram tomadas pelo pai ou esposo e admitia-se a pena de porte da mulher adultera. O Corpo da mulher era propriedade do homem.
Já em 1830, no Código Penal do Império, revoga-se o direito de matar a esposa, dando lugar a atenuante em caso de adultério. A legítima defesa da honra masculina prepondera sobre a vida da mulher e o adultério passou a ser crime, porém para os homens a relação era de concubinato, o que perdurou até o Código Civil de 1916.
Em 1916 o Código Civil, registra os valores da sociedade conservadora e patriarcal à época, ao trazer expressamente que o marido é o chefe da sociedade conjugal. Somente em 1962 essa função passa a ser exercida com a colaboração da mulher, com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4121/62). Somente em 1962, foi legitimada a permissão de que a mulher pudesse trabalhar sem a autorização do cônjuge, e foi estabelecida também pelo Estatuto da mulher casada.
Ainda no referido Código de 1916, as mulheres eram consideradas incapazes[1] (não aptas a realização de atos civis – equiparadas as menores de idades, aos pródigos). Vigorava a indissolubilidade do casamento e a mulher era obrigada a adotar o sobrenome do marido, podendo anular o casamento em virtude da prova de “não virgindade” da mulher à época do matrimônio.
No ano de 1932 as mulheres passaram a ter o direito à voto.
Somente com a promulgação da Constituição Federal de 1988 estabeleceu-se a igualdade entre homens e mulheres[2] e que tivemos, de fato, o início de políticas públicas em prol dessa igualdade. Houve também uma mudança de paradigma no Direito de Família, rompendo-se com a ideia de família sendo somente aquela instituída pelo casamento, cedendo espaço para novos arranjos familiares.
A partir daí é certo que muitos outros diplomas, como a Lei do Divórcio[3], o reconhecimento da União estável, contribuíram para o de resgate da mulher da zona de marginalidade e preconceito. A evolução do Direito de família é impulsionada pelas conquistas da liberdade e do posicionamento feminino na sociedade.
Ainda assim, o Código Penal até 2005 ainda trazia o conceito de “mulher honesta” e até recentemente o Código Penal considerava os crimes contra a liberdade sexual da mulher crime contra os costumes: privilegiando a honra e legitimando a dominação masculina acima da mulher.
Em 2006 a Lei 11.340/06, conhecida como Maria da Penha inaugura, finalmente, um sistema de proteção à mulher. A lei, que foi promulgada na forma de sanção que o Brasil recebeu da Corte Internacional dos Direitos Humanos, reconhecendo a desídia no caso da Maria da Penha, tem com o objetivo coibir e punir a violência contra a mulher em âmbito doméstico. Em 2015 surge a Lei 13.104/15, conhecida como a lei do feminicídio, que acrescenta como qualificadora objetiva do homicídio. É um marco significativo reforçando a existência do crime motivado pelo contexto da desigualdade de gênero.
Por fim, em 2018, a Lei 13.718 passa a tratar da importunação sexual e nudes e revenge porn (ameaça de vazamento de conteúdo sexual) e a lei 13.772/18 criminaliza o registro de cenas de nudez/sexo sem consentimento.
Não obstante a crescente legislação que consagrou finalmente o sistema de proteção à mulher e a busca pelo estabelecimento da igualdade – direito a não discriminação, os números nos mostram a resistência patriarcal e a violência de gênero permanecem. Resta ausente mecanismos eficientes que coíbam a desigualdade ao acesso ao mercado de trabalho, instrumentos e educação que impulsionem a divisão igualitária dos afazeres domésticos, do dever de cuidar, para que se possa promover a igualdade de oportunidades e a sanção à prática da desigualdade salarial.
Em 2020 o número de mulheres no parlamento não chega a 15%. No entanto, conforme divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral, as mulheres representam a maioria do eleitorado, com 52%[4], o que concluímos é que nós mulheres não estamos elegendo as próprias mulheres. E por que eleger mulher é importante? Pois por mais altruístas que os homens são, eles legislarão com a visão deles, e não como e para uma mulher.
A busca pelas modificações no ordenamento jurídico objetiva ir além da sensibilização para uma mudança no comportamento da sociedade, mas também como meio de ampliar a responsabilidade estatal, a adoção de medidas concretas, através das ações afirmativas, para que se estabeleça a igualdade entre homens e mulheres e a adequação do ordenamento jurídico brasileiro para eliminar toda forma de violência contra mulher.
A breve análise da trajetória da mulher através dos textos legais que compõem o ordenamento pátrio tem como finalidade, acima de tudo, dar visibilidade ao tema da luta pelos direitos das mulheres e sobretudo como forma de conscientizar e incentivar esta caminhada.
[1] . LEI 3.071, DE 1º DE JANEIRO DE 1916. Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer:
I. Os maiores de dezesseis e menores de vinte e um anos (arts. 154 a 156).
II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.
III. Os pródigos.
IV. Os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, e que cessará à medida de sua adaptação.
[2] CF de 1988 dispõe em seu artigo 5º, caput, sobre o princípio constitucional da igualdade, perante a lei, nos seguintes termos:
Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
[3] Em 1977 foi editada a EC 9/77 – instituindo o divórcio no Brasil.
[4] Dados do Eleitorado 2020.pdf (tse.jus.br)
Jurisprudências anotadas
“(…) Pelo exposto, concedo parcialmente a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para: (i) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (art. 5º, caput , da CF); (ii) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao art. 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência, (iii) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. (…).”
ADPF 779/MC/DF – Julgamento do STF em 26/02/2021
- O estudo da evolução dos textos legais reafirma a trajetória da mulher, suas conquistas e posicionamento na sociedade, mas também o quanto é necessário combater o patriarcado e machismo para que se que atinja a igualdade entre homem e mulher. Como por exemplo, infelizmente, AINDA enfrentamos a tese da legítima defesa da honra masculina como argumento de defesa em casos de crimes de feminicídio ou violência contra a mulher.
No dia 26/02/21 o STF, ainda em sede liminar, dá um grande passo para a mudança desse cenário e garantia de mais um instrumento de proteção das mulheres: a declaração da inconstitucionalidade da tese de legítima defesa da honra masculina. (ADPF 779/MC/DF – Julgamento do STF em 26/02/2021)
O Ministro Dias Toffoli, em sua decisão, traz que “a prática de um crime em razão da legítima defesa da honra constituiu, na realidade, recurso argumentativo/retórico odioso, desumano e cruel utilizado pelas defesas de acusados de feminicídio ou agressões contra mulher para imputar às vítimas a causa de suas próprias mortes ou lesões, contribuindo imensamente para a naturalização e a perpetuação da cultura de violência contra as mulheres no Brasil”.
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